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Inscrições abertas (clique na imagem) em caráter de lista de interesse. Previsão de início: abril de 2014.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A epifania de Alice


A crônica dessa semana trata de uma diagonal: um traço entre corpo e material. Assunto dos mais densos em minha pesquisa de doutoramento. Coisa que exige estudo e observação. Ainda estou longe de poder dizer  desse imbricado agenciamento. Por hora, segue apenas a narração fabular de alguns efeitos possíveis. A personagem Alice é baseada em pesquisa de campo, realizada aqui em Portugal, acrescida de uma tardia homenagem à  bailarina-performer Ludmila Machado, as cenas de seu "Entrelinhas" fazem parte de um vídeo que acompanha meu artigo no livro: Entre composições: formação, corpo e educação.  O espetáculo, a partir da interpretação de cada uma das ações de trabalho das fiandeiras, realiza uma leitura dinâmica da gestualidade das artífices da fiação. 

***


Sem que houvesse se dado conta, estava hipnotizada por aquele movimento de corpo. Bem à sua frente, a mulher, de traços grosseiros e mãos grandes, curvava-se em direção à roda. Movia-se ritmadamente, repetindo sempre o mesmo gesto, enquanto falava, explicando sobre seu ofício.

Alice não prestava atenção às palavras, o corpo dizia tudo o quanto ela conseguia ouvir. As palavras eram como ruídos, um ruído a mais em meio a muitos: o sapato da mulher a bater na tábua do chão, a tábua rangendo uma ou outra vez, a engrenagem do fuso sem óleo, a roda assoviando ao girar. 

Aquele som a fazia lembrar de quando o irmão e ela brincavam com a bicicleta coxa do Tio Vicente. Viravam-na com a única roda para cima e, dando impulso, ora com a mão no pneu ora com o pedal, faziam-na girar o  mais depressa que podiam. Logo a mãe, escutando o barulho do giro, gritava da cozinha, vão perder os dedos nessa brincadeira!

Lembrava-se disso, enquanto o zunido da roda de fiar cortava o ar, em meio às palavras de Dona Vitorina Fiandeira, naquela tarde de maio, na visita em que fez com a prima noiva, a encomendar manta para o enxoval. É de pura lã, Alice, feita sob medida, a da loja nem se compara... 

Foi quando aconteceu. Anos mais tarde, quando lhe perguntaram o porquê, ela não soube explicar bem, mas sabia que tinha sido ali, entre palavras surdas e o zunido da roda.

Já se passavam mais de dez anos e a imagem ainda lhe era clara, via a cena completa à sua  frente: enquanto uma das mãos da mulher pegava o manelo de lã do cesto, a outra parava a roda de fiar. Em seguida, ajeitava o fio torcido no fuso, unindo a ponta solta da maçaroca a um novo chumaço. Então, ainda curvada, dava um grande passo para trás e fazia a roda girar, enquanto o manelo de lã em sua mão desaparecia, fazendo surgir o fio. Cada manelo rendia-lhe uma boa metragem de fio fino, surgido de um movimento contínuo, de uma certeza de corpo que a hipnotizara. Aquele corpo, aqueles gestos, algo ali fez desaparecer o tempo. Não sabe quanto permaneceu nesse devaneio, mas o instante tornou-se sempre. 

Quando a prima a cutucou, despertando-a do transe, ela  soube. Tivera uma epifania. Soube o que faria por toda vida. Soube que nada mais a interessaria dali para frente a não ser descobrir como aqueles gestos eram capazes de plasmar-se corpo. Como aqueles movimentos se deixavam conduzir pelo material. 

A campainha soou avisando que faltavam cinco minutos para o primeiro ato. Precisava terminar de maquiar-se e aquecer-se. Amarrou as sapatilhas ainda ouvindo o chiado da roda.



A ser impresso e publicado em 14 de dezembro de 2013.