Acomodou-se na cama entre as cobertas, tentava voltar àquela
posição. Afofou o travesseiro. Eu só queria que tudo fosse como antes. Puxou a
ponta do cobertor. Era seu lema. Virou de lado. Entrega o passado ao passado,
ana! Há pouco, antes de o pesadelo a acordar, sentia um conforto tão grande na
cama, uma quentura de corpo, um esvaziar de mente. Só gostava de conseguir
voltar àquela posição e livrar-me dos pesadelos. Deu mais uma volta sobre si
mesma. É pedir demais? A cama esfriara. Vá lá. Deixou a rabugice ir-se e
acendeu o abajur. Pegou um dos livros que comprara em um alfarrabista na tarde
anterior decidida a ler até amanhecer ou voltar-lhe o sono. Le Fil de Ariane, uma brochura de 1945,
páginas amareladas, engrossadas pelo tempo. Capa de cartolina desbotada em
azul. O cheiro a entorpecia. Abriu uma
página ao acaso. “Sarrilhando o fio e a vida as mulheres aquecem-se com aquela
nesga de sol coada pelo casario a bordejar ruas estreitas de múltiplas
cumplicidades. Dobam linho e lã e tecem tempos de espera e histórias de vida
habitadas por amores, crenças, costumes, medos e esperanças”. Ficou com o livro
entre as mãos. O olhar perdido em um tempo ido. À cabeceira, o copo d’água
sobre outro livro. Queria um poema. Não podia começar a pensar em fios agora.
Tomou um gole e pegou o grosso volume, a capa marcada de muitos copos. Buscou o
que queria. A página sabida de tanto lido. Respirou forte à espera do que
viria. “Ah nada pior que a casa deserta, sozinha, sozinha. O fogão apagado e
tudo sem interesse. O mundo lá longe, para lá da floresta. E o vento soprando.
A chuva caindo. A casa deserta”. Parou o tempo. Escrever. Queria tanto poder
escrever poesia. Lembrou-se do pesadelo. A sensação da angústia sentida
voltou-lhe. Folheou algumas páginas até parar diante do muitas vezes lido.
“Como posso ter tido tanto sol alguma vez dentro de mim? Esta saudade dum outro
que sorria sem raiva e ódio não será mais do que delírio imaginado? Será a mim
que lembro?”. Ergueu os olhos da página. O dia começava a clarear. Mais chuva.
A imagem do pesadelo voltou-lhe. Levantar-se-ia. Recuso-me a pensar naquilo.
Basta aos pesadelos viverem enquanto durmo. Iria vestir-se e caminhar à
beira-rio. Sim, iria. Nada como uma actividade física para espantar os
fantasmas. Um precoce esboço de sorriso formou-se em seu rosto. Onde foi que li
algo assim ontem? Remexeu a pilha de livros acumulada na cadeira ao lado da
cama, Quando Lisboa Tremeu, um romance sobre o grande terremoto de 1755. Aqui.
Sentada na cama, abriu onde o marcador estava. “Enquanto se corre depressa e se
foge do perigo, há uma emoção permanente que atravessa o nosso corpo, uma
intensidade interior que nos excita. Mas há também uma tremenda sensação de
liberdade, uma alegria esfuziante, que nos contagia e nos absorve os
pensamentos”. Os pensamentos. São eles. Já não consigo nem mais dormir.
Levantou-se. Iria correr à beira-rio. Sabia onde estava o perigo. Lembrou-se de
lido outro. “O mundo renova-se também pela tristeza. Acolheria Tejo-rio em seus
meandros”.
Impresso e publicado em 30 de novembro de 2013.