Inscrições Abertas em caráter de lista de interesse.

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Inscrições abertas (clique na imagem) em caráter de lista de interesse. Previsão de início: abril de 2014.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A bordadeira viajante




            Sentada nos fundos da carruagem,  ia pensando em quantas vezes havia feito aquela mesma viagem no último ano. Uma rotina que se repetia semana após semana: levantar antes do sol,  vestir-se em silêncio,  ir à casa de banho sem acender as luzes para não acordar ninguém. Depois, andar pela rua escura até à estação,  aguardar na plataforma fria que o comboio chegasse e embarcar rumo ao conhecido. Se, pelo menos, o itinerário variasse, pensava ela, um pouco rabugenta, esquecendo-se, por um momento,  que estava realizando um sonho há muito desejado, que estava a fazer exatamente o que mais gostava.

Repetia aquela viagem todas as semanas nos últimos anos,  ia de Lisboa a Porto, no primeiro trem e, dezesseis horas depois, voltava no último. Chegava em casa exausta, depois de ter passado o dia todo e parte da noite a dar aulas de bordado na histórica Loja dos Bordados do Porto.

As raparigas entravam no bonito salão nos fundos da loja, com suas caixas de costura decoradas, orgulhosas ou apreensivas pelas tarefas que haviam realizado, durante o intervalo de uma semana,  entre uma aula e outra. Vinham mostrar-lhe o desenvolvimento do trabalho. Traziam o bastidor tensionado, tecido rijo entre as madeiras circulares. Os pontos formavam pequenas filigranas coloridas que, na maioria das vezes,  pouco expressava quem os fazia.

Quando, ao invés de lições de casa regulares e corretas,  percebia, em um bastidor, alguma expressividade,  algum traço de inventividade, não conseguia evitar, seu coração acelereva e, sabia, traía a neutralidade de sua expressão,  com um meio sorriso que comprimia o canto direito da boca e a fazia, irresistivelmente,  morder de leve o lábio inferior. Era sempre assim, não conseguia evitar. As alunas mais antigas já a conheciam suficientemente para perceber seus trejeitos e cochichavam quando acontecia.

Naquela manhã,  havia se comprometido consigo mesmo que ficaria atenta para que isso não acontecesse. Precisava manter a aparência de instrutora compenetrada e neutra.  Não deves nunca levantar a voz, dissera-lhe o contratante,  Sr. Coutinho Ventura,  ao lhe instruir sobre os hábitos e práticas da Escola Oficinal Feminina, orgulho da Loja de Bordados de Porto,  desde 1743.

 A família Ventura tem formado moças prendadas desde o Império,  para nós uma instrutora de bordados é o mesmo do que uma religiosa.  Deve educar, sem jamais demonstrar seus humores.

Catarina tinha mantido a compostura desde então, já iam quase nove anos, exceto por aquele discreto morder de lábio. Era impossível para ela manter-se indiferente ao perceber que a genialidade, o gosto e a vontade de viver haviam permeado,  ao mesmo tempo,  o bordado de uma aprendiz. Mordia o lábio discretamente,  mas o que estimava mesmo fazer era pular de alegria e gritar: estão vendo, estão vendo?  É possível fazer sangrar o tecido! É possível vibrar o corpo entre linhas e agulhas.

Nesses momentos sentia o corpo esquentar, a respiração entrecortava,  o coração descompassava. A emoção que sentia era a mesma, sim, a mesma,  de quando Joaquim a beijou daquela única vez. Era como se o tempo parasse, como conhecer de perto a eternidade.

Naquela manhã,  uma jovem, com um coque impecável aproximou-se, pela primeira vez de sua mesa para receber a avaliação semanal. Pedia internamente que, acontecesse o que acontecesse,  não expressasse nenhuma emoção. Foi quando viu a incrível e terrível mancha entre um rococó e um nó francês. Desculpe-me, professora,  magoei-me com a agulha ao fazer o ponto aste. Logo abaixo da mancha,  um ponto novo, indescritível,  formado por uma miscelamiscelânea de fios entrelaçados.  Uma composição única. Uma forma original.  Sabia que não havia sido descuido,  sabia que não tivera sido acidental. Era pura criação,  inventividade e originalidade.  Instintivamente,  cobriu o rosto com as mãos.  Só assim, evitaria que lhe vissem a expressão. O que seria de sua carreira de instrutora de bordados quando não mais pudesse esconder-se?

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