Fiar aescrita: exercícios e experimentações para um escrever ciência
Organização: IELT – Instituto de Estudos de Literatura Tradicional e Travessia Grupo de Pesquisa - UFJF
Local: FCSH-UNL
Data: 26 de Fevereiro de 1014
Uma roda de estudantes, professores, investigadores
e artistas e entre eles lãs, novelos, rocas, tecidos, agulhas, teares, fios e
uma pergunta por onde pegar: como fazer ciência viva e criativa?
O desafio partiu de Ana Veiga, investigadora
brasileira: se concordamos que a Academia formatou demasiado os seus textos e
processos e que é necessário devolver à escrita científica uma ligação à
emoção, ao corpo, ao material, porque não criamos um espaço de experimentação
que ajude a oxigenar a produção científica? Concordamos. No IELT estudamos as
literaturas de tradição oral, os saberes e fazeres da cultura popular, a
ligação entre tradição e modernidade, matérias tradicionalmente marginalizadas
pela Academia e que tanto nos têm ensinado sobre a importância do sensorial e
do corporal na aquisição do saber.
E assim nasceu a oficina “Fiar a escrita:
exercícios e experimentações para um escrever ciência”. Objectivo: colocar as
artes manuais e literárias ao serviço da escrita académica. Metodologia: aliar
os ensinamentos da escrita criativa e da narração oral a uma prática artífice e
sensorial da escrita, promovida no contacto com as manualidades e com as
histórias contadas e explorada num “esquizodrama de fiação”.
Na sala preparada, minutos antes de começar o
encontro, Nina Veiga, a investigadora que desafiou o IELT a organizar esta
oficina
Claro que ninguém sabia exactamente ao que vinha,
nem sequer os animadores da sessão: o escritor e professor Rui Zink, as
artista-artesãs Diana Regal, Guida Fonseca e Inês Carrelhas, o historiador de
cultura e educação Jorge Ramos do Ó, a psicóloga, contadora de histórias e
investigadora do IELT Cláudia Fonseca, e Sônia Clareto, coordenadora do
projecto “Travessia Grupo de Pesquisa”, do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil) que
acolhe a pesquisa de doutoramento de Ana Veiga. Mas isso não impediu que as 20
vagas disponíveis fossem rapidamente preenchidas por um grupo de proveniências
tão diversas quanto nós gostaríamos: várias alunas do mestrado em Educação
Artística na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, uma doutoranda
em Educação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, uma doutoranda
em História da Arte na FCSH/NOVA; alunos de Sociologia, Estudos Portugueses e
Edição de Texto na FCSH/NOVA, uma educadora social, uma artista plástica,
investigadores e professores de Psicologia, História, Tradução, Linguística,
pedagogia Waldorf.
Nina Veiga iniciando um dos participantes na arte
do tricot
Pouco passava das 9h quando Nina Veiga deu por
aberta a sessão e convidou os participantes a meter as mãos nos fios espalhados
pelo chão. Mais tarde há-de contar a alegria que teve de ver toda a gente de
fio na mão, e de lhe virem dizer o tanto que o tricotar, o fiar e desfiar
ajudaram à concentração na conversa que se foi tecendo.
Jorge Ramos do Ó teceu reflexões sobre o seminário
de leitura que coordena no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Ao
contrário da tradição escolástica, que pressupõe a adesão a uma escola de
pensamento, cada qual com um meta-discurso sobre o seu próprio discurso, numa
relação vertical professor-aluno, no seminário coordenado pelo historiador de
cultura e educação a leitura é feita em conjunto, numa dinâmica de
leitura-escrita, sendo o leitor alguém que escuta o potencial do texto mais do
que emite juízos judiciais sobre ele.
Jorge Ramos do Ó e a leitura como escuta do
potencial dos textos
Rui Zink foi prodigioso nas dicas para tecer um
texto até ao fim. Comece-se pela “lista de compras”: sabendo-se ao que se vem
tudo será mais fácil, até porque todos conhecemos as figuras de estilo, mesmo
quando lhes desconhecemos o nome. Procurar a leveza, qualidade literária
sublinhada por Italo Calvino, e nunca tentar ser imaginativo - a imaginação
nunca vem quando a convocamos. Fundamentalmente, esquecer os mitos sobre a
escrita, como o mito do génio por exemplo. "Salieri é que deveria ser o
nosso herói, e não Mozart, porque a Mozart bastava-lhe ser um génio e Salieri
tinha de trabalhar todos os dias. É preciso escrever todos os dias sem grande
esperança, como dizia Karen Blixen. Escutar o corpo e encontrar em cada dia a
técnica que serve melhor para resolver os problemas desse dia". E depois
reescrever. O processo de revisão no trabalho criativo, resume-se na seguinte
fórmula (tradução do mandarim): "quando escrevo a minha mente segue a
minha caneta, quando reescrevo é a minha caneta que segue a minha mente."
Desmistificações e alguns truques para escrever
melhor, por Rui Zink
Coordenadora do "Travessia Grupo de Pesquisa”,
Sónia Clareto defendeu uma ciência que se opõe aos modelos de verdade e se
assume como ficção (não oposta à realidade), uma ciência que responde ao
"como funciona" mais do que a "o que significa". A invenção
narrativa devolve à ciência a vida com a sua variação e multiplicidade.
A propósito de narração e de escrita, Cláudia
Beatriz Carvalho Fonseca contou o caso de uma paciente que resolveu a vida no
dia em foi capaz de resolver a escrita. "Porque a capacidade de organizar
a própria história, a própria narrativa, é um sinal de saúde mental", ou,
como diz Lídia Jorge, "quem sabe contar tem de saber ser". E depois
contou a história da tia Nevinha, que fica para um dia em que possam ir
escutá-la ao vivo, e que serviu para ilustrar como a escrita passa por um olhar
para dentro. Cláudia Fonseca falou ainda das semelhanças entre os contos e os
sonhos e a esse propósito contou uma história sobre sentidos e sabedoria.
Sônia Clareto e o regresso à Gaia Ciência
Sônia Clareto pegou na ideia do corpo sensível - o
da lavadeira da história de Cláudia -, que conhecia os tecidos como ninguém,
para regressar à necessidade de ultrapassar a velha dicotomia que desde
Sócrates e Platão opõe razão a sentimento, alma a corpo. Como nos ensinou
Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciência (1882), a cabeça só
pensa dentro de um corpo.
Sônia Clareto defende com Guimarães Rosa que o real
não se revela no princípio nem na chegada mas no meio da travessia
A artista e artesã Diana Regal falou-nos de
técnicas de tecelagem e das relações dos tecidos com os textos, que partilham
com os romances uma teia e uma trama, e depois construiu um tear humano. O
tecido que assim se teceu precisou, como uma tese, de uma estrutura - o Estado
da Arte dos textos sobre cada tema. Sobre ela se pôde depois "tecer ao
coração" ou a "tecer ao sentimento", que é como as fiadeiras
chamam ao trabalho criativo, ornamental - texto novo, autoral.
Tecer a 40 mãos e ter a noção individual do
conjunto da obra. 'Linhas com que me coso / linhas com que me ouço/ linhas com
que me ouso' são versos de um poema maior de Regina Guimarães que Diana Regal
partilhou com a (pla)teia.
Guida Fonseca falou da ancestralidade que os fios
transportam em si e do movimento encantatório da roda de fiação: "eu
também estou a escrever com as cores e as texturas, e estou a olhar para dentro
e a pôr ordem no caos, a religar as coisas". Inês Carrelhas é uma
desfiadora, desfaz os fios para lhes dar a forma e textura mais adequadas aos
tecidos que passa a vida a tecer.
Divididos em grupos, os participantes entregaram-se
finalmente ao "esquizodrama de fiação" com missão semelhante à que
Ana Veiga definiu para a sua própria investigação: "dar língua às
vivências da pesquisa que deslocam o pensar dos sentidos fixados para novos
sentidos". A solução foi construir objectos híbridos textil/texto, depois
apresentados na roda de partilha.
Guida Fonseca (ao centro) e Inês Carrelhas (à
direita), profissionais da tecelagem e tapeçaria contemporânea
Antes do remate musical de Cláudia Fonseca e Rini
Luyks, com valsas dançadas e canções sertanejas, alguém sintetizou a impressão
geral dos participantes: “Ainda não percebi tudo o que aconteceu hoje, mas sei
que a escrita da tese se tornou menos assustadora e mais divertida”. Fica
talvez assim expressa a promessa de uma ciência mais feliz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário