De um dia de pesquisa em Mira D'Aire e uma entrevista com a empresária e artista Otília Santos.
Em Lisboa, bem ao lado da Catedral da Sé, no centro
histórico da cidade, tem uma loja de peças em lã de carneiro que faz parte do
meu itinerário de pesquisa: a ChiCoração
- Sé. A proprietária, Otília Santos, é
uma daquelas mulheres que conseguem agenciar a vida-viva em sua plenitude sem
deixar de afirmar o caos cotidiano de uma vida de empresária, artista e dona de
casa. A crônica de hoje é uma ficção inspirada em seu cotidiano e será a
chamada do capítulo da tese que trata dos processos metodológicos que adoto. A saber:
contato-improvisação, fui ao armarinho e esquinar. Todas os três movimentos já
mencionados aqui na coluna em crônicas posteriores e disponíveis para a
releitura no blog -arquivo das crônicas:
http://ninaveigacronicas.blogspot.com/
Os alfinetes na boca espetavam-lhe uma vez ou outra a
língua. Gostava daquela dor, lembrava-lhe de que estava viva. Não a deixava
esquecer de que afrouxar as fronteiras entre ser dona de casa, empresária e
artista da moda, era quase sempre caótico, doía, custava, mas fazia-a sentir-se
viva. Lutava para dar caimento a uma gola, mas a malha teimava em seguir outra
direção. Há muito sabia que, não adiantava o que fizesse, a malha sempre
vencia. Naquelas horas, atribuía a
teimosia da gola ao curso de design que nunca frequentou. Tolice, dizia depois,
de si para si, as estagiárias das Belas Artes que cá estiveram, tinham desenhos perfeitos e elaborados, belas
ideias, mas não sabiam como fazer para que saíssem do papel. Por isso, respirou
fundo e deixou-se levar pelo fluxo da malha. Queria tanto a gola de um certo
jeito... ideias. Pudesse ela trabalhar sem ideias prévias. Somente entrar em
contato com os elementos e deixar-se conduzir junto ao movimento e, aí sim,
abrir-se às ideias.... Um cheiro forte invadiu o atelier situado logo abaixo da
cozinha, na grande casa, em frente à Serra de Santo António. O arroz! às
pressas, cuspiu os alfinetes em cima da mesa, deixou a malha fazer o que bem
quisesse e subiu as escadas de um fôlego só: tarde demais! Pegou na panela fumegante
pela alça, queimando um pouco a mão. No sumiço repentino do pegador, agarrou o
pano de prato e completou o trajeto até à pia. Lançou um jato de água sobre a
pedra fria, pousou a panela quente sobre a poça que se formou e escutou o
chiado com um misto de encantamento e desespero. Tarde demais! outra vez o
arroz queimado! O marido tinha razão: estás sempre com a cabeça à lua, ana!
Ainda tentando raspar a crosta escura do fundo da panela, lembrou-se de que se
havia esquecido de acrescentar arroz à lista de compras. Foi o último. Faria macarrão. Um bom macarrão instantâneo
resolveria o jantar. Então percebeu, no movimento da água sobre a panela, a
solução: está lá! A gola! Sim, basta-me isso e a malha cairá de maneira
especial. Desceu as escadas rumo ao atelier aos saltos de dois em dois, agarrou
os alfinetes em cima da mesa, um deles espetou-a bem em cima do recém-queimado
da mão. Sentiu dor, sentiu vida. Está cá: a gola caidinha, não do jeito que
havia imaginado como ideal, mas ainda melhor: uma relação de intensidade entre
o material e a ideia, o perfeito possível. Estava alegre quase eufórica. Criar
o possível! Era isso que a mantinha plena e viva. Cozinharia um macarrão chinês
com legumes e shoyu para o jantar. E acenderei as velas. Uma grande noite! Se o
marido perguntasse o que estavam celebrando, com o jantar especial, apenas
sorriria. Difícil explicar a potência que sentia. Ele não entenderia a alegria
que se dá na mistura de um arroz queimado com gola de malha, queimadura e
espetadas.
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