Inscrições Abertas em caráter de lista de interesse.

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Inscrições abertas (clique na imagem) em caráter de lista de interesse. Previsão de início: abril de 2014.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A tecelã de lidos




Acomodou-se na cama entre as cobertas, tentava voltar àquela posição. Afofou o travesseiro. Eu só queria que tudo fosse como antes. Puxou a ponta do cobertor. Era seu lema. Virou de lado. Entrega o passado ao passado, ana! Há pouco, antes de o pesadelo a acordar, sentia um conforto tão grande na cama, uma quentura de corpo, um esvaziar de mente. Só gostava de conseguir voltar àquela posição e livrar-me dos pesadelos. Deu mais uma volta sobre si mesma. É pedir demais? A cama esfriara. Vá lá. Deixou a rabugice ir-se e acendeu o abajur. Pegou um dos livros que comprara em um alfarrabista na tarde anterior decidida a ler até amanhecer ou voltar-lhe o sono.  Le Fil de Ariane, uma brochura de 1945, páginas amareladas, engrossadas pelo tempo. Capa de cartolina desbotada em azul. O cheiro a entorpecia.  Abriu uma página ao acaso. “Sarrilhando o fio e a vida as mulheres aquecem-se com aquela nesga de sol coada pelo casario a bordejar ruas estreitas de múltiplas cumplicidades. Dobam linho e lã e tecem tempos de espera e histórias de vida habitadas por amores, crenças, costumes, medos e esperanças”. Ficou com o livro entre as mãos. O olhar perdido em um tempo ido. À cabeceira, o copo d’água sobre outro livro. Queria um poema. Não podia começar a pensar em fios agora. Tomou um gole e pegou o grosso volume, a capa marcada de muitos copos. Buscou o que queria. A página sabida de tanto lido. Respirou forte à espera do que viria. “Ah nada pior que a casa deserta, sozinha, sozinha. O fogão apagado e tudo sem interesse. O mundo lá longe, para lá da floresta. E o vento soprando. A chuva caindo. A casa deserta”. Parou o tempo. Escrever. Queria tanto poder escrever poesia. Lembrou-se do pesadelo. A sensação da angústia sentida voltou-lhe. Folheou algumas páginas até parar diante do muitas vezes lido. “Como posso ter tido tanto sol alguma vez dentro de mim? Esta saudade dum outro que sorria sem raiva e ódio não será mais do que delírio imaginado? Será a mim que lembro?”. Ergueu os olhos da página. O dia começava a clarear. Mais chuva. A imagem do pesadelo voltou-lhe. Levantar-se-ia. Recuso-me a pensar naquilo. Basta aos pesadelos viverem enquanto durmo. Iria vestir-se e caminhar à beira-rio. Sim, iria. Nada como uma actividade física para espantar os fantasmas. Um precoce esboço de sorriso formou-se em seu rosto. Onde foi que li algo assim ontem? Remexeu a pilha de livros acumulada na cadeira ao lado da cama, Quando Lisboa Tremeu, um romance sobre o grande terremoto de 1755. Aqui. Sentada na cama, abriu onde o marcador estava. “Enquanto se corre depressa e se foge do perigo, há uma emoção permanente que atravessa o nosso corpo, uma intensidade interior que nos excita. Mas há também uma tremenda sensação de liberdade, uma alegria esfuziante, que nos contagia e nos absorve os pensamentos”. Os pensamentos. São eles. Já não consigo nem mais dormir. Levantou-se. Iria correr à beira-rio. Sabia onde estava o perigo. Lembrou-se de lido outro. “O mundo renova-se também pela tristeza. Acolheria Tejo-rio em seus meandros”.





Impresso e publicado em 30 de novembro de 2013.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A bordadeira viajante




            Sentada nos fundos da carruagem,  ia pensando em quantas vezes havia feito aquela mesma viagem no último ano. Uma rotina que se repetia semana após semana: levantar antes do sol,  vestir-se em silêncio,  ir à casa de banho sem acender as luzes para não acordar ninguém. Depois, andar pela rua escura até à estação,  aguardar na plataforma fria que o comboio chegasse e embarcar rumo ao conhecido. Se, pelo menos, o itinerário variasse, pensava ela, um pouco rabugenta, esquecendo-se, por um momento,  que estava realizando um sonho há muito desejado, que estava a fazer exatamente o que mais gostava.

Repetia aquela viagem todas as semanas nos últimos anos,  ia de Lisboa a Porto, no primeiro trem e, dezesseis horas depois, voltava no último. Chegava em casa exausta, depois de ter passado o dia todo e parte da noite a dar aulas de bordado na histórica Loja dos Bordados do Porto.

As raparigas entravam no bonito salão nos fundos da loja, com suas caixas de costura decoradas, orgulhosas ou apreensivas pelas tarefas que haviam realizado, durante o intervalo de uma semana,  entre uma aula e outra. Vinham mostrar-lhe o desenvolvimento do trabalho. Traziam o bastidor tensionado, tecido rijo entre as madeiras circulares. Os pontos formavam pequenas filigranas coloridas que, na maioria das vezes,  pouco expressava quem os fazia.

Quando, ao invés de lições de casa regulares e corretas,  percebia, em um bastidor, alguma expressividade,  algum traço de inventividade, não conseguia evitar, seu coração acelereva e, sabia, traía a neutralidade de sua expressão,  com um meio sorriso que comprimia o canto direito da boca e a fazia, irresistivelmente,  morder de leve o lábio inferior. Era sempre assim, não conseguia evitar. As alunas mais antigas já a conheciam suficientemente para perceber seus trejeitos e cochichavam quando acontecia.

Naquela manhã,  havia se comprometido consigo mesmo que ficaria atenta para que isso não acontecesse. Precisava manter a aparência de instrutora compenetrada e neutra.  Não deves nunca levantar a voz, dissera-lhe o contratante,  Sr. Coutinho Ventura,  ao lhe instruir sobre os hábitos e práticas da Escola Oficinal Feminina, orgulho da Loja de Bordados de Porto,  desde 1743.

 A família Ventura tem formado moças prendadas desde o Império,  para nós uma instrutora de bordados é o mesmo do que uma religiosa.  Deve educar, sem jamais demonstrar seus humores.

Catarina tinha mantido a compostura desde então, já iam quase nove anos, exceto por aquele discreto morder de lábio. Era impossível para ela manter-se indiferente ao perceber que a genialidade, o gosto e a vontade de viver haviam permeado,  ao mesmo tempo,  o bordado de uma aprendiz. Mordia o lábio discretamente,  mas o que estimava mesmo fazer era pular de alegria e gritar: estão vendo, estão vendo?  É possível fazer sangrar o tecido! É possível vibrar o corpo entre linhas e agulhas.

Nesses momentos sentia o corpo esquentar, a respiração entrecortava,  o coração descompassava. A emoção que sentia era a mesma, sim, a mesma,  de quando Joaquim a beijou daquela única vez. Era como se o tempo parasse, como conhecer de perto a eternidade.

Naquela manhã,  uma jovem, com um coque impecável aproximou-se, pela primeira vez de sua mesa para receber a avaliação semanal. Pedia internamente que, acontecesse o que acontecesse,  não expressasse nenhuma emoção. Foi quando viu a incrível e terrível mancha entre um rococó e um nó francês. Desculpe-me, professora,  magoei-me com a agulha ao fazer o ponto aste. Logo abaixo da mancha,  um ponto novo, indescritível,  formado por uma miscelamiscelânea de fios entrelaçados.  Uma composição única. Uma forma original.  Sabia que não havia sido descuido,  sabia que não tivera sido acidental. Era pura criação,  inventividade e originalidade.  Instintivamente,  cobriu o rosto com as mãos.  Só assim, evitaria que lhe vissem a expressão. O que seria de sua carreira de instrutora de bordados quando não mais pudesse esconder-se?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Pesquisa documental na Universidade Nova de Lisboa

O acervo do IELT, Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, sobre trabalhos manuais e vozes é bem constituído e de grande interesse para a pesquisa...


 No quintal de Dona Fátima

No quintal de Fátima Gomes esvoaçam filamentos brancos por sobre os arames e os ramos das árvores. São filamentos de lã levíssimos que a brisa faz ondular...



Texto e foto do livro de Tereza Perdigão: Tesouros do Artesanato Português. Vol. II. Pesquisa sensível...






segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Com o fio da confiança

Com o fio da confiança

Ser o que for __ confiar
seja o que for __ confiar
confiar é dar-se a si próprio
é tecer-se no todo
tem a ver com calma
e com uma certeza do infinito
A muito já me entreguei ao vento
ao universo
e esquecia-me de mim
estava em todas as mãos
menos nas minhas próprias
Hoje eu acordei de novo e novamente
com o fio da confiança
fio
fia fé
confio __ confia
vou tecendo a fé com esse fio
Belo tecido pra pele d'alma
lembrei de outras moradas calmas
estou em minhas mãos
no meu amor
na minha consideração __  sideração
Agora eu me confio ao universo
me reconfio ao universo

Zuarte Júnior


domingo, 13 de outubro de 2013

A fiandeira poetisa

Neste sábado, estive em Gouveia, próximo à Sintra, conversando com a fiandeira e poetisa, Maria de Fátima Gavinho



quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A mulher da roda




Este documentário sobre canções de trabalho, de 1972, "A tocadora de roda", é o número 13 da série "O Povo que Canta: Vozes e Imagens" da autoria de Michel Giacometti, realização de Alfredo Tropa, produção de Francisco d'Orey e Manuel Jorge Veloso.

O vídeo é visitado no potente texto A MULHER DA RODA, de Ana Paula Guimarães, coordenado científica do Instituto de Estudos Literários Tradicionais da Universidade Nova de Lisboa.

O texto de Ana Paula também visita outra mulher, a escrava, a que Platão narra em um diálogo de Sócrates, onde diz que Tales, olhando as estrelas, cai em uma poço.

"Era assim que Tales contemplava os astros, e uma vez, contemplando o céu, foi cair num poço. Diz-se que uma mulher da Trácia, gentil e graciosa serva, ao vê-lo, se riu escarninha daquele zeloso perscrutador das alturas, tão desatento ao que, diante dele, a seus pés, se encontrava" (Teeteto 174 a)."

A personagem, a mulher da roda, traz a dinâmica das relações entre corpo e mente que busco investigar.